Panorama: Até o Último Homem
24 de agosto de 202023 de agosto de 2020
Marco Antônio dos Santos Martins(*)
O filme Hacksaw Ridge, que no Brasil tem o título de “Até o Último Homem” (USA, 2016), é um drama de guerra biográfico, onde na zona rural da Virgínia em meio aos anos 20, o jovem menino Desmond Doss quase mata seu irmão mais novo, Hal, enquanto eles brincam. Devido a este evento e por sua educação adventista, a crença de Doss sobre o mandamento “Não Matarás” se reforça.
Após o ataque japonês a Pearl Harbor, Doss se alista no Exército para servir como médico de combate. Doss se destaca fisicamente nos treinamentos, mas é excluído socialmente entre seus colegas por se recusar a manusear um fuzil e treinar aos sábados (seguindo sua crença adventista). O Sargento e o Capitão tentam, sem êxito, dispensar Doss do Exército por razões psiquiátricas. Eles passam então a atormentá-lo de todas as formas, com a intenção de que ele peça para sair por conta própria, mas ele resiste.
Durante a Batalha de Okinawa, a unidade de Doss é encarregada de subir a Escarpa de Maeda e enfrentar os japoneses. Durante a luta inicial, com grandes perdas de ambos os lados, Doss salva a vida de seu companheiro de equipe Smitty, ganhando seu respeito.
Na manhã seguinte, os japoneses lançam um contra-ataque maciço e expulsam os americanos do topo da escarpa. Vários membros do pelotão de Doss são deixados feridos no meio do campo de batalha. Doss volta para salvá-los, carregando os feridos até a beira do penhasco e os amarrando por uma corda para descê-los. A chegada de dezenas de soldados feridos presumidos mortos é uma surpresa para o restante do pelotão.
O capitão diz a Doss que os homens do pelotão agora respeitam ele e que não iniciarão o próximo ataque, que cairá no sábado sagrado adventista, sem Doss. No dia do ataque, eles escalam novamente a Escarpa da Maeda, sendo emboscados pelos japoneses, Doss consegue salvar o capitão e outros soldados chutando granadas lançadas pelos inimigos, com a batalha sendo vencida pelos americanos.
O filme se encerra com algumas fotos e vídeos de arquivo, mostrando que Doss foi condecorado com a Medalha de Honra pelo presidente Harry S. Truman por resgatar 75 soldados na Escarpa da Maeda e que ele faleceu em 23 de março de 2006 aos 87 anos de idade.
Doss consegue manter suas convicções e conquistar o respeito dos colegas e dos superiores, em que pese o caráter absolutamente contra intuitivo de suas convicções considerando o ambiente em que se encontrava.
Guardadas as devidas proporções, o Ministro da Economia, vive nas últimas semanas um dilema semelhante ao de Desmond Doss, pois vem sendo duramente testado em suas convicções de uma política econômica mais liberal, privatizante e que prega o equilíbrio fiscal como objetivo de longo prazo. O discurso liberal, ao que parece, vem se tornando tão inóspito no governo como a situação de um soldado que se recusa a pegar um fuzil e matar inimigos em um campo de batalha.
É absolutamente compreensível que os duros efeitos econômicos do isolamento social provocado pela Covid-19 exigiram um conjunto de medidas emergenciais por parte do governo: flexibilização da política monetária e fiscal, aumento do nível de liquidez na economia e promoção de auxílios emergenciais às pessoas físicas, empresas, estados e munícipios.
Também é razoável admitir que durante um certo período de tempo é possível conviver com um cenário de deterioração das contas públicas, com crescimento do déficit primário e da dívida pública.
Por outro lado, este quadro prometia ser encarado como conjuntural, ou seja, tão logo a economia apresentasse os sinais de recuperação o governo começaria a retirar os auxílios emergenciais e voltaria a pautar as promessas de campanha, de ajuste das contas públicas e de privatizações, bem como uma ampla agenda de reformas para aumentar a eficiência do gasto público e tornar o ambiente de negócio mais propício aos empreendedores.
No entanto, o discurso com tom mais liberal do Ministro da Economia vem perdendo força dia-a-dia, diante das justificativas mais variadas, tornando cada vez mais longe o honroso apelido de “Posto Ipiranga¹”, dado pelo então candidato à presidência, para indicar que o super ministro Paulo Guedes tinha total apoio e liberdade para implementar sua agenda econômica liberal.
A Covid-19 precipitou e explicitou um debate antigo no Brasil: visão liberal x visão desenvolvimentista. Enquanto na visão liberal há mais espaço para uma economia de mercado; na visão desenvolvimentista, o Estado assume o papel de mola propulsora do desenvolvimento, fazendo renascer o discurso de vários segmentos da sociedade que gostam do Estado nacionalista, desenvolvimentista, empresário e corporativista.
O desconforto com a agenda liberal não é novo, a começar pelos integrantes da ala militar do governo, que, historicamente, possuem inclinações positivistas e nacionalistas. Na mesma linha, os tradicionais economistas desenvolvimentistas, que acreditam na capacidade do Estado como propulsor mais eficiente de desenvolvimento, apoiado por grupos empresariais que têm o governo como cliente, temem a concorrência internacional, bem como as corporações que defendem a manutenção de seu status quo. Por fim, também surgem alguns formuladores de política econômica defendendo que o momento de crise requer soluções inovadoras, não fazendo sentido os velhos paradigmas de equilíbrio fiscal.
Assim, o mercado financeiro passou mais uma semana atento à agenda do Ministro da Economia, que na segunda-feira, esteve em meio a fortes rumores sobre sua saída, com especulação de nomes para substituí-lo. Houve também declarações do Presidente da República, que em meio ao crescente debate sobre aumento de gastos X controle de gastos, sugere soluções pouco objetivas, e anunciando, por exemplo que o auxílio emergencial “será até dezembro, só não sei o valor”.
Em meio às incertezas de Brasília, o mercado não conseguiu comemorar as boas notícias da pesquisa do CAGED de que o emprego formal no Brasil apresentou expansão em julho de 2020, registrando saldo de 131.010 postos de trabalho. No acumulado do ano de 2020, foi registrado saldo de -1.092.578 empregos, com o Índice Bovespa operando com volatilidade, chegando a fechar em 99.595 pontos na segunda-feira(17) e 102.065 pontos na terça-feira (18), encerrando na sexta-feira em 101.521 pontos, com pequena valorização de 0,16% na semana, acumulando no mês perdas de 1,35%. A taxa de câmbio também operou a semana pressionada pelas incertezas em relação à condução da política econômica, com o dólar PTAX encerrando a sexta-feira em R$ 5,6064, com uma alta de 4,10% somente nesta semana, acumulando 7,74% no mês.
Os investidores torcem para que o resultado deste embate seja tão surpreendente como na vida de Desmond Doss, que o Ministro da Economia ganhe prestígio, permaneça no cargo e consiga convencer seus pares de que a médio e longo prazo a responsabilidade fiscal, com gastos públicos mais eficientes e uma agenda de inclinação liberal, é capaz permitir uma retomada de crescimento mais rápida e sustentável.
Já os números da Covid-19 permanecem em patamares elevados, convivendo com a abertura gradual da economia do País, os dados divulgados pelo consórcio de veículos de imprensa no domingo apontam para 114.772 mortes, com um total de total 3.605.726 infectados.
_______________________________
¹Campanha publicitária do posto de distribuição de combustíveis Ipiranga, que se propõe a resolver
“qualquer problema dos clientes”, que tem como resposta a qualquer pergunta “vai lá no Posto Ipiranga”.
(*) Professor do DCCA da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS, Doutor em Administração, com ênfase em Finanças e Mestre em Economia pela UFRGS.