0800 643 7444 - (51) 3231-7444 | fapers@fapers.org.br |

Panorama “Cuidado: Morfina”

25 de janeiro de 2021

24 de janeiro de 2021

Marco Antônio dos Santos Martins(*)

Em tempos de guerra, as dificuldades são muitas. Uma delas é prover tratamento médico eficaz aos soldados feridos ou vítimas das doenças disseminadas em campo de batalha, em condições precárias, com poucos recursos materiais e humanos. Historicamente, os países envolvidos em conflitos investem pesadamente no desenvolvimento de novos tratamentos e na produção maciça de medicamentos, como as transfusões de sangue e o uso da Penicilina, da Quinina, da Vacina contra o Tifo e da Morfina, que tiveram grande aplicação durante a Segunda Guerra Mundial.

A morfina é  um  fármaco-narcótico  de  alto  poder  analgésico  usado   para aliviar dores severas. Pertencente ao grupo dos opioides, foi isolado pela primeira vez em 1804 por Friedrich Sertürner, que começou a distribuir a droga em 1817. A morfina passou a ser comercializada em 1827 pela Merck, que à época era uma pequena empresa química. O nome da substância tem origem no deus grego dos sonhos (Morfeu). Depois do invento da agulha hipodérmica, as injeções de morfina passaram a ser indispensáveis para a realização de intervenções cirúrgicas. No entanto, o uso excessivo e prolongado do medicamento gera forte dependência química, com consequências nefastas e fatais.

A sociedade brasileira travou durante décadas uma inglória guerra com a inflação. “A experiência brasileira com ‘inflação alta’, de acordo com a definição de Stanley Fischer (mais de 100% anuais), é a segunda mais duradoura dentre todos os casos documentados no pós-guerra: mais de quinze anos, ou exatos 182 meses contados a partir de agosto de 1981. Durante as quatros décadas anteriores, era costume designar a inflação brasileira, de forma respeitosa, de ‘crônica’1”.

O fracasso dos sucessivos governos, ministros e planos econômicos em vencer a guerra contra a alta generalizada dos preços tornou a inflação um ícone do cotidiano nacional, com direito a mascote: o dragão da inflação. O país se tornou uma respeitadíssima referência internacional na construção de mecanismos de indexação e correção monetária capazes de permitir que a economia funcionasse com taxas de inflação elevadas, acreditando que a existência de um mecanismo que eliminasse os riscos da perda do poder de compra da moeda estimularia os agentes econômicos a alongar os prazos contratuais.

Os mecanismos de indexação começaram a ganhar amplitude a partir de 1964, popularizando o termo “correção monetária”. Como uma das primeiras medidas nessa direção, foi promulgada, em 17 de julho de 1964, a Lei nº 4.357, que estabeleceu os princípios básicos da correção dos débitos fiscais e criou a Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional (ORTN). Mais tarde, a ORTN foi substituída por uma sucessão de unidades de contas indexadas: Obrigação do Tesouro Nacional (OTN), OTN fiscal, Bônus do Tesouro Nacional, Unidade Fiscal de Referência (Ufir), Unidade de Referência de Preços (URP) e Unidade Real de Valor (URV), introduzida em 1º de março de 1994 e que se constituiu no indexador do Plano Real.

A indexação generalizada dos instrumentos contratuais utilizados na economia brasileira permitiu a longa convivência com a inflação e acabou por se constituir em um instrumento que alimentava o processo inflacionário, exigindo mecanismos de indexação cada vez mais sofisticados e em prazos cada vez menores, a ponto de instalarmos a correção diária da quase totalidade dos contratos, com uma extrema dependência dos indexadores, numa espécie de “morfina inflacionária”.

Com o Plano Real perto de completar 27 anos, as instituições brasileiras construíram mecanismos eficientes para controlar a inflação, com a sociedade demonstrando uma certa intolerância com a alta de preços. No entanto, há presença de inúmeros instrumentos contratuais com cláusula de correção monetária, incluindo os títulos da dívida pública (NTN-Bs), indicando que a confiança na moeda aumentou, mas não a ponto dos investidores abandonarem os mecanismos de proteção contra a inflação, principalmente quando se vislumbra um horizonte temporal maior.

Nesta semana, a 236ª reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) decidiu, por unanimidade, manter a taxa Selic em 2,00% a.a., de maneira que os aplicadores do CDI vão permanecer sendo remunerados com taxas de juros reais negativas. O Copom ressaltou em seu comunicado que:

“em seu cenário básico para a inflação, permanecem fatores de risco em ambas as direções.

Por um lado, o nível de ociosidade pode produzir trajetória de inflação abaixo do esperado, notadamente quando essa ociosidade está concentrada no setor de serviços. Esse risco se intensifica caso uma reversão mais lenta dos efeitos da pandemia prolongue o ambiente de elevada incerteza e de aumento da poupança precaucional.

Por outro lado, um prolongamento das políticas fiscais de resposta à pandemia que piore a trajetória fiscal do país, ou frustrações em relação à continuidade das reformas, podem elevar os prêmios de risco. O risco fiscal elevado segue criando uma assimetria altista no balanço de riscos, ou seja, com trajetórias para a inflação acima do projetado no horizonte relevante para a política monetária.

O Copom avalia que perseverar no processo de reformas e ajustes necessários na economia brasileira é essencial para permitir a recuperação sustentável da economia. O Comitê ressalta, ainda, que questionamentos sobre a continuidade das reformas e alterações de caráter permanente no processo de ajuste das contas públicas podem elevar a taxa de juros estrutural da economia.”

Dentro desta realidade, os investidores estão atentos aos próximos movimentos de política monetária e parecem não hesitar em lançar mão de mecanismos de proteção, mesmo sabendo que a “morfina” para as dores inflacionárias vicia e pode gerar nefastos efeitos colaterais no médio prazo, sendo tão perigosos como aquele fármaco-narcótico utilizado indiscriminadamente nas guerras.

Assim, cabe aos formuladores de política econômica sinalizar ao mercado suas intenções de atuar com eficácia sobre os choques exógenos nos preços, bem como reafirmar seu compromisso sobre o equilíbrio fiscal.

_____________________________________________

1 FRANCO, Gustavo H. B. A moeda e a Lei: uma história monetária brasileira 1933 – 2013. 1ª. Edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.

 

 

(*) Professor do DCCA da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS, Doutor em Administração, com ênfase em Finanças e Mestre em Economia pela UFRGS.