Panorama: O reverso de “O espelho”
3 de novembro de 202001 de novembro de 2020
Marco Antônio dos Santos Martins(*)
O conto “O espelho”¹, de Machado de Assis, foi originalmente publicado no jornal Gazeta de Notícias em 8 de setembro de 1882.
No conto, Jacobina, o protagonista, é um homem de 45 anos e de origem humilde, que conseguiu subir na vida por conta de uma nomeação a um posto militar. Certo dia estava com mais quatro amigos em uma casa em Santa Teresa debatendo sobre a alma, o universo e outros assuntos, no entanto Jacobina mantinha-se calado e parecia não estar muito interessado no assunto. Quando um dos presente exigiu que ele opinasse, Jacobina disse que iria contar um episódio de sua vida. Ele pretendia defender sua teoria de que cada pessoa possui duas almas: uma exterior e outra interior. Para ele “cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora e outra que olha de fora para dentro. ”
Ele relata que, aos 25 anos de idade, de origem humilde, foi nomeado Alferes da Guarda Nacional, o que lhe garantiu uma mudança significativa de status. Sua família passou a elogiá-lo e a se orgulhar dele, e agora era o “Sr. Alferes”. Um dia sua tia Marcolina o convidou para ir até o sítio onde morava. Por conta do status de seu sobrinho, ela lhe presenteou com um grande espelho, que se diz ser proveniente da Família Real Portuguesa, a melhor mobília da casa, e o coloca no quarto destinado a Jacobina.
Quando Marcolina saiu de viagem, seus escravos fugiram, e Jacobina viu-se sozinho no sítio. Assim, passou os dias perdido nas sombras da solidão e angustiado por ter perdido “sua alma exterior”, fruto da imagem que outros faziam dele. Então, ele decide olhar o espelho e percebe que a imagem ali refletida estava corrompida e difusa, assim como a imagem que ele fazia de si mesmo na ausência dos outros.
Não conseguindo enxergar a si mesmo com nitidez, Jacobina resolve vestir sua farda e olhar-se no espelho. Desta vez a imagem refletida era nítida e com clareza de detalhes e contornos. Jacobina então recupera sua “alma exterior” que preenchia sua “alma interior”, evitando a solidão dos dias.
Ao terminar o relato de sua história, Jacobina vai embora e deixa seus amigos em um silêncio reflexivo.
Nesta semana o primeiro mandatário da Nação demonstrou mais uma vez que, ao contrário do personagem machadiano, não incorporou a liturgia do cargo de Presidente da República: iniciou uma discussão sobre a compra da vacina para a Covid-19 tentando politizar uma importante questão de saúde pública, enquanto os noticiários eram ocupados pelas preocupações vindas do hemisfério norte em relação à segunda onda da Covid-19.
Para completar a semana, o Presidente da República aparece nas redes sociais vestindo uma camiseta de clube de futebol e, depois de tomar um gole de Guaraná Jesus, faz uma piada preconceituosa em alusão a cor rosa da bebida, esquecendo-se por um instante, que o Guaraná Jesus é um símbolo do Maranhão e uma das mais antigas marcas do Brasil.
A bebida foi criada por Jesus Norberto Gomes, que chegou à capital do Maranhão com 14 anos, na tentativa de ganhar dinheiro. Analfabeto, foi trabalhar na Farmácia Marques como lavador de potes e tubos. Contudo, com muita dedicação, Gomes aprendeu a ler e escrever, começou a auxiliar na manipulação dos medicamentos e aos 20 anos comprou a Pharmácia Galvão. Em 1927, depois de mais de mil tentativas, criou o refrigerante rosado, inspirado “em uma bebida inglesa que tinha visto”, conforme relatos da bisneta do fundador à imprensa.
As declarações de um Presidente da República são sempre levadas a sério pelos investidores, pelos parceiros comerciais, pelos empresários, por seus eleitores e, principalmente, por seus adversários, afetando diretamente as relações, a imagem e a percepção de risco do Brasil.
Enquanto a pauta é ocupada por temas irrelevantes, a questão fiscal, as pressões inflacionárias e a discussão da agenda de reformas são atrapalhadas por discussões improdutivas envolvendo ministros, Presidente do Banco Central e Presidente da Câmara dos Deputados, fazendo com que o Vice-Presidente reincorpore o papel de bombeiro do Palácio do Planalto.
No mercado financeiro, a última semana do mês decepcionou os investidores, pois os ganhos acumulados no mês, foram derretidos nos últimos dias em função, principalmente, das preocupações com a segunda onda de covid-19 na Europa e em algumas regiões dos EUA. O desempenho do mercado ainda foi bastante atrapalhado pela indefinição das eleições americanas e pelo impasse sobre o acordo para estímulo da economia americana. Além disso, as incertezas sobre teto de gastos no Brasil também contribuíram para a cautela dos investidores.
O Comitê de Política Monetária (Copom) manteve nesta quarta-feira a taxa básica de juros em 2% ao ano. Foi a segunda reunião consecutiva em que o colegiado manteve a Selic no atual patamar. A decisão veio em linha com o que era esperado por todo o mercado. No comunicado, o Copom reconhece que as “últimas leituras de inflação foram acima do esperado”. “O comitê elevou sua projeção para os meses restantes de 2020. Contribuem para essa revisão a continuidade da alta nos preços dos alimentos e de bens industriais, consequência da depreciação do real, da elevação de preço das commodities e dos programas de transferência de renda”. O Comitê destaca que, apesar da pressão inflacionária mais forte no curto prazo, mantém o diagnóstico de que o choque é temporário, mas que continuará monitorando.
Dentro desse contexto, o IBOVESPA encerrou o mês de outubro em 93.952 pontos, com uma desvalorização de 0,69% no mês. Já a taxa de câmbio, por sua vez, encerrou o mês em R$ 5,7718, com alta de 2,32% no mês.
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¹ http://machado.mec.gov.br/index.php?option=com_k2&view=itemlist&layout=category&task=category&id=24&order=year&searchw ord=pap%C3%A9is+avulsos&Itemid=668
(*) Professor do DCCA da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS, Doutor em Administração, com ênfase em Finanças e Mestre em Economia pela UFRGS.