Panorama: “EFEITO COBRA”
11 de agosto de 202009 de agosto de 2020
Marco Antônio dos Santos Martins(*)
Em relação aos incentivos econômicos, cabe ressaltar uma anedota clássica sobre o assunto, publicada no Terraço Econômico1. O texto conta que certa vez, numa cidade da Índia colonial, o governo se deparou com um problema: cobras. Na verdade, se tratava de uma infestação. A solução, pensaram os governantes, era recompensar a população pelo extermínio daqueles animais. O “prêmio pelas serpentes” estava estabelecido: uma quantia em dinheiro em troca das peles de cobras mortas.
Inicialmente, a população respondeu da forma esperada. Entretanto, com o passar do tempo, notou-se que a infestação se manteve, quiçá piorou. Ocorre que a população começou a criar cobras para obter renda. Quando o governo descobriu a malandragem, o programa foi abandonado, fazendo com que os criadores de cobras fossem obrigados a se desfazerem delas. Como resultado, aumentou ainda mais a população selvagem de cobras na cidade, ou seja, as consequências não intencionais da tentativa de solução tornaram o problema inicial ainda pior, o chamado “Efeito Cobra”, que os economistas e cientistas sociais convencionaram chamar de Lei das Consequências não Intencionais2.
A história está rica de exemplos em que a implementação de políticas públicas, por mais bem intencionadas que sejam, precisam ser monitoradas constantemente, sob o risco da Lei das Consequências não Intencionais gerar efeitos desastrosos.
Na área da saúde pública, podemos citar o seguinte exemplo: em 1903, o governo do Rio de Janeiro, para combater a peste bubônica, decidiu comprar ratos. Para tal tarefa contratou funcionários, pagando um salário fixo de 60 réis mensais, com uma meta média mensal de 150 animais, sem o que seriam dispensados. Os ratos que trouxessem a mais eram indenizados à razão de 300 réis por animal.
Os funcionários do governo, os “ratoeiros”, como foram apelidados pela população carioca, se transformaram em compradores de ratos mortos e saíam às ruas da cidade portando uma pequena trombeta, anunciando a compra do inusitado produto, e uma lata, na qual colocavam os animais comprados. A tarefa de caçá-los estava transferida à população carioca, que recebia um pequeno valor, combinado com cada “ratoeiro” por animal capturado, criando, assim, um dinâmico e exótico mercado.
No entanto, com o passar do tempo, algumas coisas não saíram exatamente como o previsto: muitos cidadãos viram uma oportunidade para ganhar dinheiro fácil. Para tanto, ratos começaram a ser criados em cativeiro ou foram “importados” de cidades circunvizinhas, chegando ao cúmulo de se fabricar ratos de papelão e de cera, que eram incinerados como se fossem verdadeiros nos fornos do Desinfectório Central3.
Em uma semana em que o Copom corta juros, a inflação sobe, a popularidade do governo sobe em razão dos auxílios emergenciais e a discussão da reforma tributária tem dificuldade de evoluir no Congresso Nacional, não há como não pensar em ser assombrado pela “Lei das Consequências não Intencionais”.
O Comitê de Política Monetária – Copom4, em sua 232ª Reunião, realizou mais um corte na taxa Selic, reduzindo-a para 2% ao ano, um piso recorde para a taxa de juros nominal. O comunicado do órgão ao mercado apresenta vários pontos importantes para reflexão.
O Copom começa justificando que a “pandemia da Covid-19 continua provocando a maior retração econômica global desde a Grande Depressão. Nesse contexto, apesar de alguns sinais promissores de retomada da atividade nas principais economias e de alguma moderação na volatilidade dos ativos financeiros, o ambiente para as economias emergentes segue desafiador”.
Já em relação à atividade econômica brasileira, o comunicado do Copom, destaca que indicadores recentes sugerem uma recuperação parcial, mas ressalta que ainda se tem muita incerteza sobre o ritmo de crescimento da economia, principalmente após a redução dos auxílios emergenciais.
Por outro lado, o Copom manifesta preocupações em relação às políticas fiscais de resposta à pandemia que piorem a trajetória fiscal do país de forma prolongada, ou frustrações em relação à continuidade das reformas que podem afetar os prêmios de risco. Destaca ainda que os estímulos monetários e fiscais implementados no combate à pandemia podem pressionar a demanda agregada pressionando os índices de preços e ressalta a importância de se preservar o processo de reformas e os ajustes das contas públicas, sob o risco de elevar a taxa de juros estrutural da economia.
O Comitê conclui que eventuais ajustes futuros no atual grau de estímulo monetário é limitado e dependerão da percepção sobre a trajetória fiscal, assim como de novas informações que alterem a atual avaliação do Copom sobre a inflação prospectiva.
Junto com as preocupações manifestadas no Comunicado do Copom, o IBGE divulgou que o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de julho subiu 0,36%, 0,10 ponto percentual (p.p.) acima da variação observada em junho (0,26%). Este é o maior resultado para um mês de julho desde 2016, quando o IPCA foi de 0,52%. No ano, o indicador acumula alta de 0,46% e, em 12 meses, de 2,31%, acima dos 2,13% observados nos 12 meses imediatamente anteriores.
Dos nove grupos de produtos e serviços pesquisados, seis apresentaram alta em julho. O maior impacto (0,15 ponto percentual) veio dos Transportes (0,78%). Em seguida, veio o grupo Habitação (0,80%), que acelerou em relação ao resultado de junho (0,04%) e contribuiu com 0,13 p.p. Já a maior variação positiva veio dos Artigos de residência (0,90%), com impacto de 0,03 p.p. O grupo Alimentação e bebidas, por sua vez, ficou próximo da estabilidade, com alta de 0,01%
No lado das quedas, o destaque ficou com Vestuário (-0,52%), cujos preços caíram pelo terceiro mês consecutivo. Os demais grupos ficaram entre a queda de 0,12% em Educação até a alta de 0,51% em Comunicação.
Os Transportes (0,78%) subiram pelo segundo mês seguido, influenciados pela alta nos preços da gasolina (3,42%), que contribuiu com o maior impacto individual (0,16 p.p.) no mês de julho. Óleo diesel (4,21%), etanol (0,72%) e gás veicular (0,56%) também subiram, levando os combustíveis a um resultado agregado de 3,12%. Destaca- se também a alta no subitem metrô (0,94%), em função do reajuste de 8,70% nas passagens no Rio de Janeiro (3,31%), vigente desde 11 de junho. No grupo Habitação (0,80%), a maior contribuição (0,11 p.p.) veio do item energia elétrica (2,59%).
Do lado fiscal, as discussões da reforma tributária não evoluem satisfatoriamente e o governo discute a prorrogação do auxílio emergencial em meio às articulações para as eleições para presidência da Câmara dos Deputados e a proximidade do pleito municipal. Já a popularidade do Presidente da República sobe junto às camadas menos favorecidas da população, catapultada pelos auxílios emergenciais, com os dados do IBGE destacando em 43% dos domicílios brasileiros há no mínimo uma pessoa que recebeu auxílio emergencial.
Para completar o quadro de preocupações os preços das principais commodities internacionais estão em alta e a redução da Selic diminui ainda mais a atratividade do Brasil frente aos demais países emergentes para atrair capital estrangeiro.
Dentro dessa realidade e preocupados com a Lei das Consequências não Intencionais e seus efeitos, o mercado de renda fixa tem aumentado a demanda por títulos indexados a índices de preços, visando proteger as carteiras de investimentos de uma possível escalada inflacionária, já que os títulos mais longos não conseguem refletir a queda de juros na mesma intensidade que os títulos mais curtos, com os títulos mais longos indexados ao IPCA sendo negociados com taxas superiores a 3,5% ao ano.
Investidores que viveram em 2015 pressões inflacionárias com Selic baixa estão temerosos, pois com se diz na região da Campanha do Rio Grande Sul: “cachorro picado por cobra tem medo de linguiça”.
Refletindo o cenário, o IBOVESPA encerrou a semana em 102.776 pontos, com uma pequena desvalorização de 0,13% em relação ao fechamento de 31 de julho (102.912) e o dólar ptax fechou estressado a R$ 5,4227, com uma alta de 4,21% no mês.
Em relação à Covid-19, a imprensa passou o final de semana tentando entender, explicar, justificar e encontrar responsáveis pela contabilização de 101.136 mortes. Para quem acompanha o Brasil a algum tempo, a gestão difusa da pandemia expõe velhas mazelas da gestão pública e das características de nossa sociedade. Cabe lembrar que, em um passado não muito distante, passamos alguns meses tentando decidir se era para ligar ou não os faróis dos veículos nas rodovias federais. Seria quase um milagre esperar que a gestão de uma pandemia com esta magnitude fosse executada de forma coordenada entre governo federal, estadual, municipal e sociedade civil.
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1 https://terracoeconomico.com.br/a-questao-dos-incentivos-economicos/
2 https://www.econlib.org/library/Enc/UnintendedConsequences.html
3 https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/25343/2/Artigo5.pdf
4 https://www.bcb.gov.br/detalhenoticia/17148/nota
(*) Professor do DCCA da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS, Doutor em Administração, com ênfase em Finanças e Mestre em Economia pela UFRGS.