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Panorama: A alquimia do papel-moeda

7 de julho de 2020

05 de julho de 2020

Marco Antônio dos Santos Martins(*)

No século XVIII, a realeza europeia contava com um grupo de astrólogos, mágicos e alquimistas para auxiliar na solução dos problemas do reino. Os alquimistas eram incumbidos de aplicar suas técnicas para produzir ouro a partir de outros metais, resolvendo assim os desequilíbrios fiscais produzidos pelos monarcas. Goethe¹, na segunda parte de sua obra “Fausto”, classifica a criação do papel-moeda, como a alquimia dos tempos modernos, dando ao Estado o poder de criar riqueza com emissão de papel-moeda.

A história de Fausto, o homem que fez um pacto com o demônio para obter poder e prazeres, teve centenas de versões. Entre todas se destaca a de Goethe, a mais famosa, um marco na literatura mundial. No entanto, com pouquíssima frequência, a obra “Fausto” é considerada na íntegra. Poucos sabem da existência de uma segunda parte da tragédia, só publicada após a morte do escritor. Esta segunda parte leva o pacto mefistofélico para o terreno da economia e das finanças de Estado. É Mefisto quem inventa o papel-moeda, aproveitando-se de um soberano atordoado numa noite de Carnaval.

A tragédia pode ser lida como uma metáfora para o desenvolvimento econômico moderno e é tratada pelo economista Hans Christoph Binswanger em sua obra “Dinheiro e Magia” (Zahar), com a edição brasileira tendo prefácio e posfácio de Gustavo H. B. Franco, ex-presidente do Banco Central. O prefácio familiariza o leitor com a trama de Fausto, enquanto o posfácio identifica a tragédia do desenvolvimento brasileiro decorrente do fato de o sucesso econômico ter absolvido colonizadores, escravocratas e corruptos, bem como os responsáveis pela desigualdade e pela hiperinflação.

O autor relata que Goethe, para escrever a segunda parte da obra, na qual Fausto personifica um criador de riqueza rápida, teria se inspirado no escocês John Law, que, em 1715, ganhou permissão do regente francês, o duque de Orléans, para fundar um banco emissor de papel-moeda, face às graves dificuldades financeiras em que se encontrava a França.

Binswanger descreve que “em 1717, Law fundou, com créditos do banco, a Companhia do Ocidente, empresa que monopolizava o comércio com as possessões coloniais francesas da América do Norte. As ações dessa companhia serviam como cobertura para o papel-moeda, e a empresa recém-fundada promoveu a colonização da bacia do Mississippi e a fundação de Nova Orléans. Isso produziu uma considerável explosão do comércio na França. Controlando a maior parte das ações das várias empresas e atuando como tomador de empréstimos, o Estado participava duplamente dos lucros de todo o empreendimento.

Diante de sua crise financeira, o regente havia adotado a medida costumeira de contratar uma sucessão de alquimistas para sua corte, com a tarefa de produzir ouro artificial. De modo significativo, no mesmo instante em que convocou John Law a Paris, ele demitiu todos eles. É evidente que o regente compreendera que Law, o neoalquimista, poderia ser mais bem-sucedido, como de fato foi.

O experimento de Law fracassou, contudo, em 1720, principalmente porque ele quis apressar seu projeto prescindindo da garantia em ouro. Isso levou ao colapso do preço das ações, à inflação e, por fim, ao repúdio (recusa a aceitar o papel-moeda). John Law quase foi linchado e escapou por um triz para a Veneza, onde passou o resto de seus dias levando a vida ociosa de um jogador.

Embora o experimento francês tenha fracassado, seu modelo inglês, em contraposição, foi um absoluto sucesso, fato em geral desconsiderado. O molde inglês foi o Banco da Inglaterra, fundado em 1694. Embora, durante o século XVIII, ele tenha sido obrigado a suspender várias vezes seus pagamentos, o banco sobreviveu e expandiu-se.

A partir do século XIX, na Inglaterra, o papel-moeda legalmente autorizado, suplementado pela moeda escritural dos bancos comerciais privados, iniciou uma marcha triunfal que logo conquistaria o mundo todo. Ela se tornou a base do poder mundial inglês e de seu domínio sobre o comércio do planeta.”2

O trecho da obra de Binswanger, transcrito neste texto, nos remete a outros tantos momentos vividos pelas nações através dos tempos, alguns muito bem sucedidos e outros desastrosos. A emissão de papel-moeda como instrumento de alavancagem de desenvolvimento econômico pode até ser benéfica no curto prazo, mas pode ser nefasta a longo prazo se for usada de forma desmedida, sem os devidos mecanismos de governança entre os governos e seus respectivos órgãos emissores.

Para os brasileiros, que, desde a chegada da Família Real, vivenciaram diversas crises cambiais, fiscais e inflacionárias, bem como excessos cometidos nas políticas monetárias e fiscais, justificados “belas boas intenções dos governantes” ou por crises internacionais diversas, a crise da Covid-19 e seus impactos na economia e nas contas públicas são uma fonte de constante preocupação.

A Secretaria do Tesouro Nacional divulgou na segunda-feira (29), que no mês de maio último, as contas do governo federal registraram um déficit primário recorde de R$ 126,6 bilhões, incluindo os resultados do Tesouro Nacional, da Previdência Social e do Banco Central, comparado com os R$ 14,7 bilhões, registrados em maio do ano passado.

O resultado é explicado pela queda significativa na arrecadação combinada com o forte aumento nas despesas devido ao combate à Covid-19. Foi o pior resultado mensal da série histórica da instituição, iniciada em 1997. O déficit primário de todo ano de 2019 foi de R$ 95 bilhões.

A Secretaria do Tesouro Nacional estima que o rombo nas contas do setor público consolidado (governo, estados, municípios e empresas  estatais)  deverá  somar R$ 708,7 bilhões em 2020, ou seja, 9,9% do Produto Interno Bruto (PIB). Se confirmado, esse será o maior valor da série histórica do Banco Central, iniciada em 2001.

No atual momento, sabe-se o quanto é necessário flexibilizar as políticas fiscais e monetárias, contudo é imprescindível que os governantes não se afastem dos pilares da responsabilidade fiscal, sinalizando que estes desequilíbrios são conjunturais e que não se transformarão em estruturais.

Após quase quatro meses convivendo com a pandemia da Covid-19, a semana se encerrou com o Brasil registrando 64.383 mortes e 1.579.837 contaminados, conforme dados divulgados pelo consórcio de veículos de imprensa, no boletim das 13h deste domingo (5), sem que se tenha sinais claros de estabilização do número de casos e com a gestão do isolamento social bastante confusa, pois alguns municípios estão relaxando o isolamento enquanto suas curvas de óbito ainda demonstram ascendência.

Já o mercado de ações passou a semana tentando acreditar na retomada da economia global, sendo animada em boa parte por números positivos do mercado de trabalho nos Estados Unidos. Na sexta-feira, segundo o site do ValorInveste, em meio ao feriado americano, o mercado ficou animado com o índice de gerente de compras (PMI) do setor de serviços da China, medido pelo grupo de mídia local Caixin, que foi dos 50 pontos, em maio, para 58,4, em junho – resultado mais expressivo desde abril de 2010. Quando índice fica acima de 50, indica expansão de atividade; se abaixo, contração. Para a zona do Euro, o PMI composto (serviços + indústria), calculado pela consultoria IHS Markit, foi, de maio a junho, dos 31,9 aos 48,5 pontos. Ainda é uma contração, mas já é o nível mais alto de atividade dos últimos quatros meses no bloco, e acima da média estimada por analistas para o mês, de 47,5 pontos. Assim, o IBOVESPA encerrou a sexta-feira (3) em 96.765 pontos, com uma valorização de 3,12% em relação ao último dia 26 de junho. Para animar um pouco mais os mercados, a queda nos estoques de petróleo dos Estados Unidos sinalizam a retomada da economia.

Vale ainda destacar que na terça-feira (30), último dia do semestre, o IBOVESPA encerrou em 95.056 pontos, com uma valorização de 8,76% no mês, mas ainda acumulando perdas de 17,80% no ano.

Na mesma linha de entusiasmo do IBOVESPA, o dólar PTAX fechou a semana cotado a R$ 5,3374, com uma desvalorização de 2,29% na semana. Já no fechamento do semestre, a moeda americana foi cotada a R$ 5,4760, com uma valorização de 0,92% no mês e de 35,86% no ano.

O semestre começa com os investidores tendo consciência de que será um período em que os juros baixos deverão empurrá-los para um portfólio mais arriscado, exigindo ainda um monitoramento da evolução da Covid-19 e como os setores da economia irão enfrentar um cenário de “stop-and-go” no ritmo da atividade econômica no Brasil, principalmente os setores de varejo e de serviços, no que se refere ao mercado interno, e os setores e commodities em relação à economia externa, sem contar o contínuo monitoramento da evolução das contas públicas.

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¹ Johann Wolfgang, escritor e estadista alemão
² BINSWANGER, Hans Cristoph. Dinheiro e Magia. Zahar. Rio de Janeiro: 2011.

(*) Professor do DCCA da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS, Doutor em Administração, com ênfase em Finanças e Mestre em Economia pela UFRGS.