Panorama: A Espada de Dâmocles
30 de junho de 202028 de junho de 2020
Marco Antônio dos Santos Martins(*)
Dâmocles, conselheiro da corte de Dionísio, o Velho, tirano de Siracusa, século IV a.C, ficou célebre ao longo da história, pelo lendário episódio da Espada de Dâmocles, que se tornou uma expressão que significa perigo iminente ou os riscos inerentes a posição de mando.
Era uma vez, um rei chamado Dionísio, monarca de Siracusa, a cidade mais rica da Sicília. Vivia num palácio cheio de requintes e de coisas bonitas, atendido por uma criadagem sempre disposta a fazer-lhe as vontades. Naturalmente, por ser rico e poderoso, muitos siracusanos invejavam-lhe a sorte. Dâmocles estava entre eles. Era um dos melhores amigos de Dionísio e dizia-lhe frequentemente: – Que sorte a sua! Você tem tudo que se pode desejar. Só pode ser o homem mais feliz do mundo!
Dionísio foi ficando cansado de ouvir esse tipo de conversa e certo dia propôs: Troque de lugar comigo por um dia apenas e desfrute disso tudo, o que foi imediatamente aceito por Dâmocles.
No dia seguinte, Dâmocles foi levado ao palácio e todos os criados reais lhe puseram na cabeça as coroas de ouro. Ele sentou-se à mesa na sala de banquetes e foi- lhe servida lauta refeição. Nada lhe faltou ao seu bel-prazer. Havia vinhos requintados, raros perfumes, lindas flores e música maravilhosa. Sentiu-se o homem mais feliz do mundo. – Ah, isso é que é vida! – confessou a Dionísio, que se encontrava sentado à mesa, na outra extremidade.
De repente Dâmocles enrijeceu-se todo. O sorriso fugiu-lhe dos lábios e o rosto empalideceu. Suas mãos estremeceram. Esqueceu-se da comida, do vinho, da música. Só quis saber de ir embora dali, para bem longe do palácio, para onde quer que fosse. Pois havia observado que pendia bem acima de sua cabeça uma espada, presa ao teto por um único fio de crina de cavalo. A lâmina brilhava, apontando diretamente para seus olhos.
Ele foi se levantando, pronto para sair correndo, mas deteve-se temendo que um movimento brusco pudesse arrebentar aquele fiozinho fino e fizesse com que a espada lhe caísse em cima. Ficou paralisado, preso ao assento.
– O que foi, meu amigo? – perguntou Dionísio – Parece que você perdeu o apetite.
– Essa espada! Essa espada! – disse o outro, num sussurro – Você não está vendo? – É claro que estou. Vejo-a todos os dias. Está sempre pendendo sobre minha cabeça e há sempre a possibilidade de alguém ou alguma coisa partir o fio.
Um dos meus conselheiros pode ficar enciumado do meu poder e tentar me matar. As pessoas podem espalhar mentiras a meu respeito, para jogar o povo contra mim. Pode ser que um reino vizinho envie um exército para tomar-me o trono. Ou então, posso tomar uma decisão errônea que leve à minha derrocada.
Quem quer ser tirano, ocupar as primeiras posições e controlar a ferro e fogo tudo e todos precisa estar disposto a aceitar esses riscos. Eles vêm junto com o poder, percebe? – É claro que percebo! – disse Dâmocles – Vejo agora que eu estava enganado e que você tem muitas coisas no que pensar além de sua riqueza, fama e posição. Por favor, assuma o seu lugar e deixe-me voltar para a minha modesta casa. Até o fim de seus dias, Dâmocles não voltou a querer trocar de lugar com o rei tirano, nem por um momento sequer.
O risco de uma segunda onda da Covid-19 ao redor do mundo vem se transformando em uma “Espada de Dâmocles” sobre os agentes econômicos, na medida em que o entusiasmo com os incentivos dos governos, com os anúncios dos avanços da vacina e de uma retomada econômica é frequentemente interrompido, de forma súbita, pelos anúncios de aumento de casos da doença, traduzindo-se em volatilidade nos preços dos ativos.
Analisar o comportamento bipolar das últimas semanas do mercado financeiro, alternando o excesso de entusiasmo por repentinas frustrações, sugere um olhar além da Moderna Teoria de Finanças, que assume a premissa do “homo economicus”, que assume conhecer todas as informações disponíveis, a eficiência dos mercados e que toma decisões racionais o tempo todo. Os agentes racionais tomam decisões racionais e sobrevivem, enquanto os agentes irracionais são expulsos do mercado pelos racionais.
Destaca-se que a Teoria das Finanças Comportamentais assume o pressuposto que o ser humano possui uma racionalidade limitada e não toma decisões racionais o tempo todo. A ideia básica das finanças comportamentais não é rejeitar todos os aspectos das finanças modernas ou tradicionais, mas sim aperfeiçoar os modelos financeiros através da incorporação de tendências de comportamento detectadas nos seres humanos. Os alicerces das teorias das finanças comportamentais são fundamentados a partir dos estudos de dois psicólogos israelenses, Daniel Kahneman2, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2002, e Amos Tversky.
Kahneman instituiu dois sistemas pelos quais o funcionamento mental era baseado, o Sistema 1 (intuitivo ou automático) e o Sistema 2 (deliberado ou controlado). No intuitivo ou automático é onde ocorrem julgamentos e decisões de maneira rápida e automática, mediante operações simples e sem esforço algum para os indivíduos, conhecido também como o “piloto automático”. Já o sistema deliberado ou controlado, o método de tomada de decisão é mais lento e preciso, caracterizando as operações com sequência e dependente de esforços.
Para o autor o Sistema 1 teria mais influência sobre nossas vidas do que se percebe e a sua essência seria a memória associativa, pois o ser humano está constantemente construindo uma interpretação coerente do que acontece em seu mundo. Entretanto, o Sistema 1 gera impressões e sentimentos que são a principal fonte das crenças explícitas e das escolhas do Sistema 2, afinal o ser humano não suportaria desconhecer as causas de seus julgamentos.
O Sistema 1 representa formas rápidas e semi-intuitivas utilizadas para tomar alguma decisão ou solucionar algum problema, enquanto o Sistema 2 representa um raciocínio mais lento e elaborado. Resumindo, a maior parte do que pensamos e fazemos tem origem no Sistema 1, mas o Sistema 2 é que assume o controle quando surgem dificuldades e, normalmente, tem a última palavra.
O processo decisório dos indivíduos é influenciado pelas emoções e erros cognitivos, afastando as pessoas da racionalidade ilimitada. Kahneman ainda destaca que os “erros sistemáticos de avaliação são conhecidos como vieses e se repetem de forma previsível em circunstâncias particulares”. Para os estudiosos da teoria das finanças comportamentais os erros sistemáticos, como heurísticas, crenças, julgamentos, preferências ou linhas cognitivas e emocionais, afrontam as teorias econômicas que possuem como pressuposto a racionalidade dos agentes, conseguindo melhor explicar, de um modo mais verdadeiro, as anomalias existentes no mercado financeiro.
Os formuladores da teoria das finanças comportamentais apresentam três vieses que poderiam auxiliar na compreensão do funcionamento do mercado financeiro neste momento, o primeiro é o viés do excesso de confiança, o segundo o da ilusão do controle e o terceiro o da aversão a perdas.
O viés excesso de confiança induz os indivíduos a confiar de forma excessiva em suas próprias opiniões e conhecimentos, além de maximizar sua contribuição individual para a tomada de decisão, possuindo a tendência de acreditar que está sempre correto em suas escolhas e incumbindo a fatores externos os seus eventuais erros.
Este viés decorre da crença dos indivíduos de que a informação em seu poder é suficiente para o processo decisório, que são mais capazes de controlar os seus eventos do que são na realidade, ou ainda que tem uma capacidade maior do que os demais agentes do mercado.
O viés da ilusão de controle é caracterizado pela tendência mental que todos os seres humanos possuem de superestimar o controle que têm sobre os resultados de suas ações. Isto é, acreditamos que temos mais domínio do que realmente temos.
Como efeito do excesso de confiança, a ilusão de controle expõe como somos falhos em ponderar o nosso nível de convicção com os eventos que se desenrolam à nossa volta, tanto no presente quanto no futuro. Nesse caso específico, há um desequilíbrio ao entender o poder das nossas ações, assim como a sua extensão.
Finalmente, o viés da aversão a perdas é decorrente da Teoria do Prospecto, na qual Kahneman e Tversky sustentam que os indivíduos sentem muito mais a dor da perda do que o prazer obtido por um ganho semelhante. Os autores propõem um problema para explicar este efeito. “Imagine um jogo de cara ou coroa: se der cara, você perde US$100, caso dê coroa, você ganha US$150. Você aceitaria esta aposta? Apesar de o valor esperado da aposta ser positivo (você se candidata a ganhar mais do que pode perder), muitas pessoas não aceitam. Foi também avaliado no experimento a quantia mínima que os indivíduos estariam dispostos a aceitar para participar de tal aposta, para muitas pessoas o valor observado foi de US$200, o dobro da perda. Dessa forma, elas se sentiriam compensadas e menos impactadas pelo risco de perder.
A dificuldade de compreender e projetar o comportamento da Covid-19, bem como quantificar seus impactos sobre a economia expõem as fragilidades cognitivas dos tomadores de decisão, exacerbando o nível de incerteza dos mercados, que em um momento estão otimistas, pelo excesso de confiança e ilusão de controle; e no momento seguinte estão muito deprimidos pelo viés de aversão à perdas.
Resumindo os mercados na semana, vale dizer que o resultado foi satisfatório, considerando que uma enorme nuvem de poeira saiu do Saara e chegou no Caribe, uma nuvem de gafanhotos está devastando a Argentina e ameaça o Rio Grande do Sul e a quantidade mortos pela Covid-19 chega em 57.568 mortos, dando a impressão que estamos revivendo no século XXI uma versão moderna das “Pragas do Egito”. O IBOVESPA encerrou a semana em 93.834 pontos, com uma desvalorização de 2,83% na semana, mas ainda acumulando uma alta de 7,35% no mês. Já o dólar Ptax, fechou em R$ 5,4619 na sexta-feira (26), com uma alta de 2,17% na semana e de 0,67% no mês. A exceção da semana foi a tranquilidade do cenário político, que não gerou pontos de volatilidade nos mercados.
Em termos de estratégia, os investidores continuam vivendo o dilema de buscar proteção na renda fixa, contentando-se com uma taxa de juros bastante baixa, ou alocar mais risco em seu portfólio, salientando que a alocação de risco irá exigir uma adequada análise setorial, visando identificar os setores da economia mais resilientes à crise e com maior capacidade e velocidade de recuperação. Assim, selecionar gestores de investimentos com boa capacidade de análise com expertise em gestão ativa parece ser fundamental para garantir bons resultados no médio e longo prazo.
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1 Relatado por Marcus Tullius Cícero (106 a.C. – 43 a.C.), em Tusculanae disputationum, libri III, 45 a.C,.
² Kahneman, D. Rápido e Devagar: duas formas de pensar. Editora Objetiva, São Paulo: 2012.
(*) Professor do DCCA da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS, Doutor em Administração, com ênfase em Finanças e Mestre em Economia pela UFRGS.1 Relatado por Marcus Tullius Cícero (106 a.C. – 43 a.C.), em Tusculanae disputationum, libri III, 45 a.C,.