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Panorama: Um Brasil de Múltiplas Curvas

14 de maio de 2020

08 de maio de 2020

Marco Antônio dos Santos Martins(*)

Confirmando as projeções iniciais, a evolução do número de casos de contaminação e de morte pelo coronavírus demonstra que o Brasil adentra o mês de maio, o segundo mês mais importante para o varejo no Brasil, assumindo a condição de novo epicentro da Covid-19 no mundo, fazendo com que todos concentrem seus esforços em compreender a evolução das curvas de contaminação e morte e projetar os possíveis pontos de inflexão. Talvez o ponto de partida para uma análise mais assertiva seja o de aceitar que a curva do coronavírus no Brasil merece ser dissecada em múltiplas curvas com inclinações específicas e muito diversas.

Para ilustrar essa reflexão, cabe revisitar a fábula “O rei da Belíndia”, escrita em 1974 pelo economista Edmar Bacha, onde ele critica a política econômica da época, e introduz o termo Belíndia para designar um Brasil de grandes desigualdades econômicas e sociais. Esta fábula é uma das três que compõem a primeira parte do livro Belíndia 2.01, com o qual Edmar celebrou seus 70 anos.

Com a fábula “O rei da Belíndia”, Edmar Bacha tenta mostrar como a política econômica da década de setenta, que ostentava elevadas taxas de crescimento do PIB, não combatia as desigualdades sociais e, ainda, as acentuava. Ao cunhar o termo “Belíndia”, Edmar Bacha sugere a mistura entre Bélgica e Índia, simbolizando, respectivamente, a prosperidade e o desalento, para ressaltar as diferenças de renda e os contrastes sociais no Brasil.

Após exatos quarenta e seis anos e sucessivos governos de diversos matizes políticos e ideológicos, observa-se que o texto de Edmar Bacha ainda é atual, tendo em vista que as desigualdades sociais no Brasil são abissais, fazendo com que a curva de contágio do coronavírus e sua taxa de letalidade assumam diferentes facetas correlacionadas às condições socioeconômicas de cada região, de forma que a realidade do Amazonas e do Pará, seja muito diferente da do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais, ou ainda, que o conceito de distanciamento social da Av. Faria Lima seja muito diferente do da Comunidade de Paraisópolis, em São Paulo, ou o do Leblon em relação ao da Comunidade da Rocinha, no Rio de Janeiro. Da mesma forma podemos realizar comparações em relação ao acesso e qualidade do sistema de saúde, à eficácia do distanciamento social ou à taxa de desemprego.

Após quase dois meses da adoção das medidas de distanciamento social, o Brasil entra no período crítico da doença: com a grande maioria das regiões não conseguindo atingir metas eficazes de distanciamento social, com um grande número de casos e com o sistema de saúde em colapso. Ao mesmo tempo, o Brasil chega ao mês de maio, segundo melhor mês do comércio varejista, muito ressentido com os efeitos econômicos e aguardando ansiosamente medidas de relaxamento do distanciamento social.

A tentativa de relaxamento do distanciamento social deverá ser gradual e correlacionada com a inclinação de cada curva e com a situação do sistema de saúde. No entanto, como em muitas regiões o número de casos da Covid-19 tem aumentado de forma significativa, os governos têm adotado medidas para restringir ainda mais o convívio social, projetando o inevitável agravamento do quadro econômico e social.

Na busca de uma racionalização deste quadro, o mercado financeiro brasileiro refletiu o clima de incerteza com uma curva nervosa ao longo da semana, mas que encerrou estável em relação a 30 de abril. O índice IBOVESPA, encerrou a semana com 80.263 pontos, com perdas de 0,30%, diante dos 80.505 pontos do último dia 30 de abril, após ter atingido a mínima da semana na quinta-feira, quando fechou a 78.119 pontos, acumulando perdas de 2,97% na semana.

Na quarta-feira (06), o Comitê de Política Monetária (Copom), em sua 230ª reunião, decidiu, por unanimidade, reduzir a taxa Selic para 3,00% a.a. No comunicado divulgado ao mercado, após o final da reunião, foi informado que: “A atualização do cenário básico do Copom pode ser descrita com as seguintes observações:

No cenário externo, a pandemia da Covid-19 está provocando uma desaceleração significativa do crescimento global, queda nos preços das commodities e aumento da volatilidade nos preços de ativos. Nesse contexto, apesar da provisão adicional de estímulos fiscal e monetário pelas principais economias, e de alguma moderação na volatilidade dos ativos financeiros, o ambiente para as economias emergentes segue desafiador, com saída de capitais significativamente superior à de episódios anteriores;

• Em relação à atividade econômica, dados mensais disponíveis até o mês de março repercutem apenas parcialmente os efeitos da pandemia da Covid-19 sobre a economia brasileira. Indicadores de maior frequência e tempestividade, referentes ao mês de abril, mostram que a contração da atividade econômica será significativamente superior à prevista na última reunião do Copom;

• O Comitê avalia que diversas medidas de inflação subjacente se encontram abaixo dos níveis compatíveis com o cumprimento da meta para a inflação no horizonte relevante para a política monetária; • As expectativas de inflação para 2020, 2021 e 2022 apuradas pela pesquisa Focus encontram-se em torno de 2,0%, 3,3% e 3,5%, respectivamente;

• No cenário híbrido, com trajetória para a taxa de juros extraída da pesquisa Focus e taxa de câmbio constante a R$5,55/US$*, as projeções do Copom situam-se em torno de 2,4% para 2020 e 3,4% para 2021. Esse cenário supõe trajetória de juros que encerra 2020 em 2,75% a.a. e se eleva até 3,75% a.a. em 2021. Esse cenário supõe ainda que o preço do petróleo (Brent) subirá cerca de 40% até o final de 2020; e • No cenário com taxa de juros constante a 3,75% a.a., taxa de câmbio constante a R$5,55/US$* e a mesma premissa para o preço do petróleo, as projeções situam-se em torno de 2,3% para 2020 e 3,2% para 2021.

O Comitê ressalta que, em seu cenário básico para a inflação, permanecem fatores de risco em ambas as direções.

Por um lado, o nível de ociosidade pode produzir trajetória de inflação abaixo do esperado. Esse risco se intensifica caso a pandemia provoque aumentos de incerteza e de poupança precaucional e, consequentemente, uma redução da demanda agregada com magnitude ou duração ainda maiores do que as estimadas.

Por outro lado, políticas fiscais de resposta à pandemia que piorem a trajetória fiscal do país de forma prolongada, ou frustrações em relação à continuidade das reformas, podem elevar os prêmios de risco e gerar uma trajetória para a inflação acima do projetado no horizonte relevante para a política monetária.

O Copom avalia que perseverar no processo de reformas e ajustes necessários na economia brasileira é essencial para permitir a recuperação sustentável da economia. O Comitê ressalta, ainda, que questionamentos sobre a continuidade das reformas e alterações de caráter permanente no processo de ajuste das contas públicas podem elevar a taxa de juros estrutural da economia.

Considerando o cenário básico, o balanço de riscos e o amplo conjunto de informações disponíveis, o Copom decidiu, por unanimidade, reduzir a taxa básica de juros em 0,75 ponto percentual, para 3,00% a.a. O Comitê entende que essa decisão reflete seu cenário básico e um balanço de riscos de variância maior do que a usual para a inflação prospectiva e é compatível com a convergência da inflação para a meta no horizonte relevante, que inclui o ano-calendário de 2021.

O Copom entende que, neste momento, a conjuntura econômica prescreve estímulo monetário extraordinariamente elevado, mas reforça que há potenciais limitações para o grau de ajuste adicional. O Comitê avalia que a trajetória fiscal ao longo do próximo ano, assim como a percepção sobre sua sustentabilidade, serão decisivas para determinar o prolongamento do estímulo.”

Este comunicado é capaz de traduzir, ao menos em parte, as incertezas associadas ao comportamento das curvas de juros: se por um lado a taxa Selic cai a níveis históricos como instrumento de estímulo à retomada da economia, reduzindo o custo do crédito e estimulando a liquidez no sistema; por outro, permanecem as preocupações com o crescimento das contas públicas e com o afrouxamento da política fiscal, principalmente, quando se verifica as pressões de prefeitos e governadores sobre o Congresso Nacional para a aprovação de compensações de perdas de receitas sem grandes limitadores.

O bom comportamento da curva de juros de longo prazo vai depender do quanto os governantes serão capazes de sinalizar que o aumento de gastos públicos é extraordinário e que, tão logo a economia volte à normalidade, a agenda de reformas será retomada, visando à melhora do ambiente de negócios, à simplificação, do que o Ministro da Economia Paulo Guedes, acertadamente, denomina como “manicômio tributário”, e à aceleração do programa de privatizações, garantindo uma retomada do investimento privado.

A taxa de câmbio, que já vem estressada com as incertezas políticas e pressão nos gastos públicos, acelerou a alta com a queda da Taxa Selic, pois com a redução da diferença entre os juros no Brasil e no exterior, as aplicações financeiras locais perdem competitividade junto aos investidores estrangeiros, pressionando a saída de recursos do país e aumentando a oferta de reais e a procura por dólares. O resultado é que cotação do dólar comercial fechou a semana em R$ 5,7428, com uma alta de 5,57% comparado com os R$ 5,4397 de 30 de abril.

O outro anúncio importante da semana foi a inflação oficial do mês de abril. O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de abril foi de -0,31%, enquanto a taxa registrada em março foi de 0,07%. Esta é a menor variação mensal para o IPCA desde agosto de 1998 (-0,51%). No ano, o IPCA acumula alta de 0,22% e, nos últimos doze meses, de 2,40%, abaixo dos 3,30% observados nos 12 meses imediatamente anteriores. Em abril de 2019, a taxa havia ficado em 0,57%, apontando que a curva da mediana do IPCA projetada para o ano de 2020 era 1,97%, de acordo com o Relatório Focus2 publicado pelo Banco Central do Brasil em 30 de abril, bem abaixo do centro da meta, que é de 4%.

De acordo com o IBGE, dos nove grupos de produtos e serviços pesquisados, seis tiveram deflação em abril e o maior impacto negativo do mês, -0,54 ponto percentual (p.p.), veio do grupo Transportes (-2,66%). A segunda contribuição negativa mais intensa (-0,05 p.p.) veio dos Artigos de residência (-1,37%), cuja queda foi mais intensa que a registrada em março (-1,08%). No lado das altas, destaca-se o grupo Alimentação e bebidas (1,79%), que acelerou em relação a março, com impacto de 0,35 p.p. no IPCA de abril. Os demais grupos ficaram entre a queda de 0,22% em Saúde e cuidados pessoais e a alta de 0,10% em Vestuário.

A queda no grupo dos Transportes (-2,66%) deve-se sobretudo ao recuo observado nos preços dos combustíveis (-9,59%), em particular da gasolina (-9,31%), que apresentou o maior impacto individual negativo no índice do mês (-0,47 p.p.).

Houve quedas no preço desse combustível nas 16 regiões pesquisadas, sendo a maior em Curitiba (-13,92%) e a menor no Rio de Janeiro (-5,13%). Ainda em Transportes, as passagens aéreas (15,10%) registraram alta após três meses consecutivos de quedas. O item ônibus urbano (0,11%) foi outro a apresentar variação positiva, em função do reajuste de 5,00% no preço das passagens em Salvador (1,56%), em vigor desde 12 de março.

O grupo dos Artigos de residência (-1,37%) apresentou a segunda maior variação negativa no índice do mês, influenciada pelas quedas dos itens mobiliário (-2,92%) e eletrodomésticos e equipamentos (-3,58%). Por outro lado, artigos de tv, som e informática (0,72%) e de cama, mesa e banho (1,35%) registraram variações positivas no IPCA de abril.

A maior contribuição positiva no índice do mês (0,35 p.p.) veio de Alimentação e bebidas (1,79%), que acelerou em relação ao resultado do mês anterior (1,13%). A alimentação no domicílio passou de 1,40% em março para 2,24% em abril, com destaque para as altas da cebola (34,83%), da batata-inglesa (22,81%), do feijão-carioca (17,29%) e do leite longa vida (9,59%). As carnes (-2,01%) apresentaram queda pelo quarto mês consecutivo, desta vez mais intensa que a do mês anterior (-0,30%).

A alimentação fora do domicílio, por sua vez, passou de 0,51% em março para 0,76% em abril. Após a alta de 0,13% em março, o grupo Habitação teve queda de 0,10% em abril, influenciado pelo recuo nos preços da energia elétrica (-0,76%).

Ainda em Habitação, a variação positiva da taxa de água e esgoto (0,21%) decorre do reajuste médio de 6,23% em uma das concessionárias de Porto Alegre (1,94%), em vigor desde 21 de março. Alguns artigos de limpeza (0,10%) também tiveram alta, com destaque para o amaciante e alvejante (1,82%), a água sanitária (0,90%), o detergente (0,81%) e o desinfetante (0,59%).

Regionalmente, 14 das 16 áreas pesquisadas tiveram deflação em abril. O menor índice ficou com a região metropolitana de Curitiba (-1,16%), por conta da queda nos preços da gasolina (-13,92%). Já o maior resultado foi registrado na região metropolitana do Rio de Janeiro (0,18%), em função das altas nos preços das passagens aéreas (15,83%) e da energia elétrica (1,33%).

Em meio a tantas curvas, os econometristas e infectologistas tentam calibrar os parâmetros de seus modelos, visando aumentar o nível de assertividade das previsões, pois, ao que tudo indica, estamos diante do que se define em economia, de uma “mudança de regime”, onde os dados históricos tradicionais são capazes de gerar projeções com elevada variância.

Para o Brasil, mesmo considerando as dificuldades de se construir um cenário consistente para médio e longo prazo, ainda é possível acreditar que a economia brasileira possui bons fundamentos e que as instituições democráticas adquiriram um grau de amadurecimento capaz de encontrar as soluções para superar a atual crise de saúde pública e da economia, sem abandonar os princípios da estabilidade monetária e do equilíbrio fiscal.

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1 BACHA, Edmar Lisboa. Belíndia 2.0: fábulas sobre o país dos contrates. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, 459 p.
2 O Relatório Focus resume as estatísticas calculadas considerando as expectativas de mercado coletadas até a sexta-feira anterior à sua divulgação. Ele é divulgado toda segunda-feira coletadas pelo BCB. O relatório traz a evolução gráfica e o comportamento semanal das projeções para índices de preços, atividade econômica, câmbio, taxa Selic, entre outros indicadores. As projeções são do mercado, não do BCB.

 

(*) Professor do DCCA da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS, Doutor em Administração, com ênfase em Finanças e Mestre em Economia pela UFRGS.